O governo vai editar uma MP para mudar o Código de Mineração e cobrar mais impostos do setor
POR ANDRE BARROCAL
OUANDO O CARNAVAL de 2003 terminou, a indústria da mineração era pura folia. Com patrocínio de 2,5 milhões de reais da Vale, maior mineradora brasileira, o carnavalesco Joãosinho Trinta levara à Marquês de Sapucaí a história da exploração de pedras preciosas e minérios no País. O enredo renderia um bronze aos Acadêmicos do Grande Rio, sua melhor colocação até então, e a estreia da escola no desfile das campeãs no Rio de Janeiro. Uma década depois, o fim do carnaval promete notícias nada festivas para quem lucra com o subsolo brasileiro. Especialmente para a Vale.
A Quarta-Feira de Cinzas disparou a contagem regressiva imposta a si mesmo pelo governo para redigir uma nova lei que mudará as regras do jogo da mineração. Com atraso de quatro anos, o Palácio do Planalto planeja editar até março uma Medida Provisória para modernizar a legislação e elevar a cobrança de royalties do setor. O governo ainda não definiu exatamente as novas alíquotas, mas deseja ao menos triplicar a arrecadação em relação a 2012, quando os cofres públicos receberam 1,8 bilhão de reais das mineradoras. Ou seja, alcançar no mínimo 6 bilhões de reais ao ano. Dilma Rousseff promete, a exemplo do que tenta fazer com os recursos do petróleo, investir o dinheiro extra prioritariamente em educação. E aposta em um período de baixa popularidade das mineradoras entre os parlamentares para vencer a batalha no Congresso Nacional.
Segundo o governo, o atual Código Brasileiro de Mineração, herdado da ditadura, é permissivo nas concessões de minas. A exploração depende de autorização oficial, mas basta aos interessados justificar os pedidos. A permissqp é gratuita e repassada ao primeiro a reivindicá-la. Uma vez concedida, dura enquanto o indivíduo viver, a empresa existir ou a mina não se esgotar. O sistema, entende o governo, é o oásis dos atravessadores. Gente interessada apenas em amealhar dinheiro com o comércio de permissões e que pode se dar ao luxo de esperar por um comprador, pois a autorização não tem prazo.
Contra a especulação, o governo quer endurecer a liberação de autorizações para pesquisa e exploração em áreas mais valiosas. Elas devem ter data de validade e ser leiloadas (leva quem paga mais) em licitações abertas somente a empresas ou a associações e cooperativas. Já é assim na indústria petroleira. A Austrália, um dos grandes produto res mundiais, adota modelo semelhante.
Para Brasília, regras mais claras levariam as empresas a investir mais em pesquisa e extração. Um dos cinco gigantes globais do setor, o Brasil poderia quintuplicar a produção, segundo o Plano Nacional de Mineração 2030. O maior potencial está no fundo do mar, chamado de “a última fronteira” da mineração em documento oficial de 2011. Nas próximas semanas, o Brasil deve pedir à ONU, pela primeira vez na história, o direito de pesquisar com exclusividade uma área perto da costa, mas já em águas internacionais, onde a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) achou indícios de reservas minerais, ferro entre elas.
O governo também se move pelo sentimento de que as mineradoras poderiam contribuir mais com o País, dados os enormes lucros registrados neste século. De 2000 a 2012, ficaram mais caros, bem mais caros, diga-se, os dez metais comuns e preciosos que o Banco Mundial monitora. Seis deles ouro, prata, ferro, cobre, estanho e chumbo explodiram, com altas acima de 300%.
Um dos campeões de aumento foi o ferro, cuja extração no Brasil é a maior do planeta. De 2000 a 2011, o minério só subiu menos que a prata. Não por acaso, a Vale, principal exploradora do metal no País, registrou em 2011 o maior lucro da história de uma empresa em terras nativas, 37,8 bilhões de reais, 2,8 vezes o que o governo pagou aos beneficiários do Bolsa Família naquele ano.
No embalo das cotações internacionais, o cofre das mineradoras em atividade no Brasil ficou abarrotado. A receita saltou de 7,7 bilhões de dólares, em 2001, para 55 bilhões em 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). Aumento de 614%, mais que o dobro da valorização do salário mínimo em dólar (283%).
Com o galope do faturamento, as empresas passaram a entregar mais dinheiro à União, estados e municípios a título de royalties. O pagamento pulou de 326 milhões de reais, em 2004, para 1,834 bilhão de no ano passado. Apesar de a arrecadação ter crescido cinco vezes e meia, o governo acha pouco diante do que as mineradoras têm embolsado.
As empresas, principalmente a Vale, estão encurraladas. Não podem alegar que a rentabilidade dos últimos tempos é passageira. Apesar de certa freada em 2012, a maioria dos metais tende a continuar em alta. Em seu último boletim com previsões para o preço de commodities, divulgado em janeiro, o Banco Mundial estima o aumento das cotações de seis metais até 2025 (alumínio, ferro, chumbo, zinco, estanho e níquel). Só o cobre e os preciosos (ouro, prata e platina) devem baratear um pouco, mas nada que os devolva aos níveis das décadas de 1980 e 1990 (gráficos).
Qual a explicação para a reviravolta no mercado dos metais? “A medida que as nações ao redor do mundo se industrializam e as populações se esforçam para melhorar seus padrões de vida, a mineração vem para assumir um papel mais central no cenário mundial”, diz um relatório de 2012 da Deloitte, uma das maiores consultorias globais.
Em outras palavras, o crescimento dos países emergentes, liderado pela China, esquentou a compra de metais, que estão por toda a parte. O ferro vira o aço que fabrica máquinas, tratores, carros. O cobre é ótimo condutor de eletricidade (a geração de energia segue a industrialização) e matéria-prima de tubos de prédios e casas. A platina, além do uso tradicional como joia, serve para refinar petróleo, outro produto cuja procura cresce em ciclos de desenvolvimento.
O boom de mineração despertou o apetite dos países donos de reservas, não importa a linha política de seus governos. Na Austrália, terra das duas principais rivais da Vale, a Rio Tinto e a BHP Billiton, o governo trabalhista aprovou em 2012 um Imposto de Renda especial de 30% sobre os superlucros (acima do equivalente a 150 milhões de reais) das companhias. No Chile, fonte de metade do cobre mundial, o neoliberal Sebastián Pinera propôs em seu primeiro ano, 2010, uma lei que elevou os royalties de 4% para entre 5% e 9%.
No Peru, onde metade da arrecadação depende do extrativismo, a moderada gestão de Ollanta Humala dobrou em 2011 a cobrança de royalties, para até 6%. Na Tanzânia, quarto maior produtor de ouro da África, o governo do Partido Revolucionário baixou uma nova lei de mineração em 2010 e elevou de 3% para 4% os royalties dos metais preciosos. A índia, democracia mais populosa, subiu para 10% os royalties da mineração em 2009. A China, regime autoritário mais populoso, aumentou os impostos em 2011.
Na sexta-feira 8, véspera do carnaval, o ministro das Finanças de Quebec, maior província do Canadá, convocou as mineradoras para uma reunião em março para rever a taxação, sob o argumento de que “o mercado de minerais não é o que era há dez anos” e que é necessário “maximizar os benefícios” à população.
No caso brasileiro, a convocação aconteceu nos primeiros dias de 2013. A presidenta Dilma Rousseff voltou das férias na Bahia disposta a priorizar a nova lei da mineração e mandou a equipe apressar os trabalhos. Para ela, é hora de pôr um ponto final numa discussão que se arrasta há anos no governo. O tema havia sido deixado de lado pela concentração de esforços na legislação do pré-sal, pelo cálculo político de que ainda não era o momento de comprara briga e pelas eleições de 2010 e 2012.
Por ordem da presidenta, a chefa da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, comandou a partir de 15 de janeiro uma série de reuniões com técnicos do governo e representantes do setor privado. Já foram ao Palácio do Planalto os presidentes e diretores de Vale, Gerdau, Votorantim Metais, Ibram e Associação Brasileira de Pesquisa Mineral (ABPM).
As reuniões ocorreram em clima cordial, mas difícil, pois os empresários encaram a proposta como outra forma de “ingerência estatal”. Hoffmann expôs com franqueza a mudança no jogo. Para o governo, disse, há uma intolerável especulação no caminho da produção. Adotar o sistema de licitação e impor datas de validade para as permissões afastariam os atravessadores e estimulariam os investimetos. Pediu contribuições aos interlocutores e solicitou aos empresários que mantivessem o assunto longe da mídia.
Dilma Rousseff sente-se confortável para uma nova batalha dos royalties, pois acredita ser melhor para as mineradoras fecharem um acordo com o governo do que buscar apoio parlamentar contra o projeto. O lobby mineral no Congresso está enfraquecido. Na eleição de 2006, as doações da Vale irrigaram a campanha de 46 deputados, a maior “bancada” de uma empresa. Em 2010, a companhia mudou de atitude e só financiou os diretórios do PSDB de São Paulo, do PMDB de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, além do PCdoB em nível nacional. Na avaliação de uma autoridade do governo, poucos setores são tão impopulares no Congresso atualmente como a mineração.
As empresas não podem apelar nem aos adversários da presidenta. Ao contrário. Desde 2011, o PSDB comanda a tropa defensora de uma tributação maior para a indústria mineral e tem seu presidenciável, o senador mineiro Aécio Neves, na linha de frente. O partido dirige dois estados, Minas e Pará, que, juntos, respondem por 75% da produção nacional. Quanto mais royalties, dos quais 88% são rateados entre governos e prefeituras, melhor para eles.
Projetos de senadores dos dois estados dão ideia do ibope em baixada mineração. Flexa Ribeiro (PSDB-PA) quer proibir as empresas de descontar certas despesas da base de cálculo dos royalties e justifica: seria uma forma de “reduzir substancialmente a sonegação”. Clésio Andrade (PMDB-MG), que foi vice de Aécio no governo mineiro, propôs dobrar os royalties do ferro para 4%. “Se a indústria da mineração não tem interesse em criar novos empregos e renda no Brasil, preferindo exportá-los para a China, pelo menos que se aumente a receita da União, de estados e municípios”, afirmou.
Relator do projeto do colega tucano, Aécio endureceu o texto. O senador defende que a taxação do ferro suba de 2% para 5% e cria para o setor uma taxa semelhante àquela aplicada no petróleo, a participação especial. “O que as empresas pagaram até agora é irrisório. Apesar do lobby das mineradoras, é possível aprovar uma mudança nos royalties”, afirma. Segundo Aécio, trata-se de uma questão “urgente” para a qual o governo deve uma resposta desde 2008. “Já são cinco anos de prejuízos que não têm retorno.”
A taxação das mineradoras foi tema da campanha para prefeitos no ano passado e opôs Dilma Rousseff a seu provável rival tucano na eleição presidencial de 2014. Na reta final da campanha, a presidenta vetou uma lei na qual o Congresso, em demonstração dos atuais sentimentos nutridos pela Vale no Parlamento, criara um dispositivo para cobrar mais royalties da mineradora. Acusada pelo PSDB de defender a companhia, a presidenta teve de se explicar no último comício em Minas: “Minério tem de pagar royalty como paga o petróleo. Não há hipótese de o governo federal não colocar para aprovação no Congresso uma lei de mineração”.
O uso eleitoral do tema não é uma jabuticaba brasileira. Antes de a Austrália aprovar o IR especial da mineração, o primeiro-ministro trabalhista, Kevin Rudd, comprou uma briga com as empresas que lhe custou popularidade e obrigou-o a desistir da reeleição em 2010, o que abriu caminho à rival de partido Julia Gillard. No Chile, o presidente Sebastián Pinera enfrentou um adversário em 2010 que prometia dobrar os royalties.
O relatório de Aécio foi tema de uma audiência pública no Senado em outubro de 2011 que expôs o desconforto do empresariado. Segundo o presidente da Vale, Murilo Ferreira, as mineradoras pagam impostos demais no Brasil. “BHP, Rio Tinto, Vedanta, Xstrata, as grandes mineradoras mundiais não estão no Brasil. Por que será?” O então presidente do Ibram, Paulo Camilo Penna, reclamara de que o debate parecia ter surgido somente por causa dos lucros da Vale. “Essa percepção do Código de Mineração, da agência de mineração, da legislação de royalties, deve ser analisada num ambiente de mais de 10 mil empresas que funcionam no Brasil.”
CartaCapital procurou a Vale e o Ibram para conhecer suas posições em 2013. Por meio da assessoria de imprensa, a Vale informou que quem opina pelo setor é o Ibram. Já a assessoria do instituto afirmou que seu atual presidente, José Fernando Coura, não estaria disponível no período em que a reportagem era elaborada.
Professor e pesquisador de Mineração na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Rodrigo Salles Santos discorda do argumento de que o setor paga altos impostos no Brasil. O especialista comparou a carga tributária de 27 países e três províncias e concluiu que o País estava entre os cinco com as menores taxas. “As companhias mineradoras têm pouco do que se queixar.”
Especialista em legislação mineral, o advogado Luiz Fernando Visconti, do escritório Tozzini Freire, revela uma apreensão por parte das empresas, pois até agora elas nem tiveram acesso por escrito às propostas do governo nem sabem como será a transição para o novo modelo. Segundo Visconti, a mudança será interpretada como um aumento do controle estatal. “Tudo isso vai certamente causar um impacto direto no custo das empresas, mas acredito que o Brasil continuará atrativo para investimentos, o País tem muitas riquezas minerais.”
Uma nova fase de expansão do setor é algo que preocupa alguns movimentos sociais. A Casa Civil, hoje palco de negociações com os empresários, recebeu no ano passado um manifesto assinado por sindicatos e deputados que reivindicava um debate a envolver as comunidades onde ocorre a exploração de minas. O extrativismo, anota o texto, avança sem preocupação social, ambiental e trabalhista. “A discussão até agora é sobre como aumentar a extração e a fatia do Estado. Não se pensa como o royalty deveria ser usado para desenvolver a economia local independentemente do minério, que um dia vai acabar. Esta é uma visão muito anos 70”, diz o engenheiro e doutor em política ambiental Bruno Milanez, assessor de alguns signatários do manifesto.
Fonte: Carta Capital
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